O inferno



Leitura sugerida: Mt 5.29

Ao longo da história do cristianismo, diversas interpretações acerca do inferno foram formuladas, muitas dessas interpretações mesmo que medievais ainda regem o pensamento de muitos cristãos. Porém, no decorrer desses séculos o inferno foi pensado e repensado. É um tema que volta mesmo entre nós, os do Caminho. Alguns ainda questionam sobre a condenação dos homens. Quando criticamos teorias sobre o inferno, somos tachados rapidamente de universalistas, como se afirmássemos que todos serão salvos até contra a própria vontade.

Em determinados grupos cristãos o inferno é tão presente como tema, que certa vez ouvi um líder neopentecostal dizer que "a Bíblia se refere muito mais ao inferno do que ao Reino..." o que é evidentemente uma grande mentira, que para mim só revela a má intenção de tal pregador. A verdade é que os termos associados ao céu ocorrem cerca de 269 só no NT, enquanto os termos relacionados ao inferno só ocorrem 28 vezes. E isso no NT pois no AT o inferno como nós fomos ensinados não faz o menor sentido.

Na minha infância inferno basicamente era o lugar para onde ia os membros de todas as demais religiões ou de outros grupos cristãos diferentes do meu. Ou seja, a arrasadora maioria das pessoas. Na adolescência servia para evitar que pecasse, os chamados pecados sexuais. E na vida adulta, tornou-se uma arma contra os adversários.

Mas vamos começar uma análise. Afinal o que sabemos sobre esse tema? A palavra inferno, que hoje conhecemos, origina-se da palavra latina pré-cristã infernus "lugares baixos", infernus. Na Bíblia latina, a palavra é usada para representar o termo hebraico Seol e os termos gregos Hades e Geena, sem distinção. A maioria das versões em idioma Português seguem o latim, e eles não fazem distinção do original hebraico ou grego. Das palavras Hades e Sheol, ambas com mesmo significado, tendo conotação clara de um lugar para onde os mortos vão, todos eles. O próprio Jesus foi, pois refere-se a sepultura, sua câmara mortuária. Diz as escrituras “ele não foi esquecido no Inferno, foi ressuscitado ao terceiro dia”.

Na época de Cristo, o mundo dos mortos não possuía a importância e a função infernal como tal conhecemos hoje. Foi no século IV que o inferno passou a ganhar força e importância no cristianismo e surgiu uma doutrina cristã acerca da visita de três dias de Cristo ao Mundo dos Mortos. Nesta fase, o inferno cristão, enquanto produto do pensamento Ocidental, começava a se tornar no inferno mais bem elaborado que se tem registro. Ela passou a ser elaborada conforme o desenvolvimento da teologia dogmática e alcançou seu auge na Idade Média como podemos encontrar na famosa obra de Dante – A divina Comédia.

O inferno, segundo Dante, possui nove estágios. Os cinco primeiros estão no limbo: (1) lugar das almas não batizadas, (2) dos sensuais, (3) gulosos, (4) avarentos e pródigos, e (5) furiosos. No Baixo Inferno estão (6) hereges e incrédulos, (7) os que pecaram contra o próximo, contra si mesmo e contra Deus, (8) sedutores, adulteradores, adivinhadores, hipócritas, ladrões, maus conselheiros e fundadores de seitas, e (9) traidores da família, da pátria, dos amigos e dos benfeitores. Ainda, no lugar mais baixo do inferno está o Diabo. O comando do Diabo é ambíguo: é o império do reino doloroso e, ao mesmo tempo, o império do nada.

A crença no inferno como saída para o mal denota em submissão ao catolicismo e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, em um ódio que não se harmoniza com os preceitos dos Evangelhos.

Sendo assim porque então esse tema sempre volta, até em círculos como os dos caminhantes? Creio que por causa de má compreensão soteriológicas. A questão da salvação é fundamental para a configuração de “infernos”. A exclusividade da salvação coloca em jogo discursos moralistas e formas de viver. Para a maioria dos cristãos a salvação é um bem exclusivo dos adeptos dessa religião. Até mesmo um ateu com boas intenções não poderia se salvar.

A exclusividade da salvação é um dos fatores determinantes na configuração do imaginário do céu e do inferno na teologia sistemática. Teólogos que tentaram mostrar outras formas de pensar a salvação foram excluídos e considerados herege pela igreja.

Mas afinal, o inferno existe? Gosto de pensar com Karl Rahner que disse “O inferno é uma Virtualidade”. O inferno não é um lugar, mas é um estado, uma situação. Está muito mais ligado a vida do que a pós vida. Assim da mesma maneira que não se pode negar a existência do mal, não se pode negar situações infernais na vida. Sobre a condenação pós-morte ninguém pode afirmar que não existam condenados, nem que os condenados são numerosos, ou que não existem nenhum. Conhecemos, somente, uma coisa: se o mal não for combatido energeticamente, o inferno será a realidade entre nós e por nós.

E engana-se que com isso a tragédia do inferno é diminuída. Não há nada mais trágico do que a perda da singularidade, da ameaça de não ser e não poder vir a ser. O inferno é o aniquilamento do ser e do vir-a-ser. O inferno é uma experiência radical e possui significados profundos.  O inferno é a vida sem Deus. E como é possível uma vida sem Deus? Não é possível realmente, mas é possível virtualmente, ou seja, é possível a mente ser imersa numa condição infernal. E como isso se dá? Quando negamos o que somos em Deus, ou seja quando negamos o status de criatura finita e colocamos nossa força vital e motivação existencial num determinado grupo, apenas, ou em si mesmo, e não em Deus.

Ora qualquer outra ideia do inferno não posso aceita-la pois não condiz com minha fé no amor de Deus. Posso retratar isso com a parábola de Rubem Alves

“ Era uma vez um velhinho simpático que morava numa casa cercada de jardins. O velhinho amava os seus jardins e cuidava deles pessoalmente. Na verdade fora ele que pessoalmente o plantara – flores de todos os tipos, árvores frutíferas das mais variadas espécies, fontes, cachoeiras, lagos cheios de peixes, patos, gansos, garças. Os pássaros amavam o jardim, faziam seus ninhos em suas árvores e comiam dos seus frutos. As borboletas e abelhas iam de flor em flor, enchendo o espaço com as suas danças. Tão bom era o velhinho que o seu jardim era aberto a todos: crianças, velhos, namorados, adultos cansados. Todos podiam comer de suas frutas e nadar nos seus lagos de águas cristalinas. O jardim do velhinho era um verdadeiro paraíso, um lugar de felicidade.

O velhinho amava a todas as criaturas e havia sempre um sorriso manso no seu rosto. Prestando-se um pouco de atenção era possível ver que havia profundas cicatrizes nas mãos e nas pernas do velhinho. Contava-se que, certa vez, vendo uma criança sendo atacada por um cão feroz, o velhinho, para salvar a criança, lutou com o cão e foi nessa luta que ele ganhou suas cicatrizes.

Os fundos do terreno da casa do velhinho davam para um bosque misterioso que se transformava numa mata. Era diferente do jardim, porque a mata, não tocada pelas mãos do velhinho, crescera selvagem como crescem todas as matas. O velhinho achava as matas selvagens tão belas quanto os jardins. Quando o sol se punha e a noite descia, o velhinho tinha um hábito que a todos intrigava: ele se embrenhava pela mata e desaparecia, só voltando para o seu jardim quando o sol nascia. Ninguém sabia direito o que ele fazia na mata e estranhos rumores começaram a circular. Os seres humanos têm sempre uma tendência para imaginar coisas sinistras. Começaram, então, a espalhar o boato de que o velhinho, quando a noite caía, se transformava num ser monstruoso, parecido com lobisomem, e que na floresta existia uma caverna profunda onde o velhinho mantinha, acorrentadas, pessoas de quem ele não gostava, e que o seu prazer era torturá-las com lâminas afiadas e ferros em brasa. Lá – assim corria o boato – o velhinho babava de prazer vendo o sofrimento dos seus prisioneiros.

Outros diziam, ao contrário, que não era nada disto. Não havia nem caverna, nem prisioneiros e nem torturas. Essas coisas existiam mesmo era só na imaginação de pessoas malvadas que inventavam os boatos. O que acontecia era que o velhinho era um místico que amava as florestas e ele entrava no seu escuro para ficar em silêncio, em comunhão com o mistério do universo.”

Bom! Em que versão acreditar? Eu já fiz minha escolha. Creio na bondade de Deus e por isso o amo. Jamais amaria um Deus que tem um inferno guardado para os homens.

E a Bíblia? Creio em suas parábolas e parábolas são metáforas que falam sobre os cenários da alma humana. E as parábolas não falam sobre um lugar exterior chamado inferno. Elas falam do fogo que jamais se acaba, dentro da alma, a não ser pela fé e pelo amor.

Alguns insistirão. Então você não crer no inferno Ivo? Para quem ainda não entendeu tudo que disse, termino com as palavras de Lutero: “o inferno existe, mas Deus é tão generoso que não manda ninguém para lá.”

Ivo Fernandes
16 de outubro de 2016

 

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