Qual o sentido da vida? Do mito de Sísifo ao Eclesiastes


Leitura: Livro de Eclesiastes

Tudo é vaidade – diz o pregador. Vaidade, expressão que pode significar inútil, vazio, sem sentido. Não há propósito para o trabalho do homem. Não há nada de novo debaixo do sol

Inegavelmente o livro de Eclesiastes trata do sentido da vida. O que vale a pena, nos poucos dias do homem, debaixo do sol? É a pergunta que ele nos faz.

A busca pelo sentido da vida nos conduz a vários tipos de caminho. Uns tomam o caminho do cinismo e se entregam a um hedonismo, transformando a vida num eterno gozar de prazeres; outros tomam o caminho da religião e se afastam de tais prazeres vivendo a vida a partir da privação e do não; e a grande maioria se contenta com os clichês que darão conta de pôr algum sentido na vida, do tipo, “Deus sabe o que faz” “Deus escreve certo por linhas tortas”. Deus, nos dois últimos casos, é o que usamos para nos esquivar da vaidade da vida.

Porém o livro de Eclesiastes não quer maquiar a vida, quer tratar a realidade de maneira nua e crua. Busca o sentido da vida e descobre que ela é mais complexa do que nossos sistemas de codificação podem definir. O filósofo Albert Camus escreveu “Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, aparece em seguida. ” (O mito de Sísifo)

Partindo dessa reflexão, o sentido da vida é a questão mais decisiva de todas. E como responder a isso? Como dar conta do sentimento que nos toma ao perceber o divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário?

Ocorre que é justamente quando o sem sentido da vida nos chega que é possível começar a viver. Tudo começa com um "porque", quando o cansaço chega. O cansaço está no final dos atos de uma vida mecânica, mas inaugura ao mesmo tempo o movimento da consciência. Aqui, eu tenho de concluir que ele é bom. Pois tudo começa com a consciência e nada sem ela tem valor. A simples "preocupação" está na origem de tudo.

Voltando ao livro de Eclesiastes, a primeira coisa que ele nos convida é a pensar. E pensar doí. Ele nos chama a abandonar os atalhos que nos aliviam a caminhada. Se a vida é uma eterna repetição, o que esperar dela? Ou melhor, o que fazer dela?

Creio que uma das primeiras lições é aceitar a própria finitude e ignorância. Simplesmente não vamos conseguir explicar tudo. Segundo, o Deus apresentado no Eclesiastes não é um Deus de universais, logo não podemos tratar as coisas dessa forma. Não existem doutrinas, apesar de toda repetição da história, o livro trata de singularidades. É apenas lidando com as singularidades que podemos encontrar potência, e por fim é preciso substituir as questões metafísicas pelas questões imanentes.

E o que significa isso? Viver a existência sem negá-la em razão da eternidade. Aceitar a vida e dela retirar suas forças, não buscar consolo fora da própria existência. Viver, não para a eternidade mas para a própria existência, eis o conselho de Eclesiastes.

E o mito de Sísifo? Os deuses tinham condenado Sísifo a rolar um rochedo
Incessantemente até o cimo de uma montanha, de onde a pedra caía de novo por seu próprio peso. Eles tinham pensado, com as suas razões, que não existe punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.

Existem algumas versões do mito de Sísifo. Segundo Higino, ele odiava seu irmão Salmoneu; perguntando a Apolo como ele poderia matar seu inimigo, o deus respondeu que ele deveria ter filhos com Tiro, filha de Salmoneu, que o vingariam. Dois filhos nasceram, mas Tiro, descobrindo a profecia, os matou. Sísifo se vingou, por causa disso, ele recebeu como castigo na terra dos mortos empurrar uma pedra até o lugar mais alto da montanha, de onde ela rola de volta.
Segundo Pausânias, certa vez, uma grande águia sobrevoou sua cidade, levando nas garras uma bela jovem. Sísifo reconheceu a jovem Égina, filha de Asopo, um deus-rio. Mais tarde, o velho Asopo veio perguntar-lhe se sabia do rapto de sua filha e qual seria seu destino. Sísifo logo fez um acordo: em troca de uma fonte de água para sua cidade, ele contaria o paradeiro da filha. O acordo foi feito e a fonte presenteada recebeu o nome de Pirene. Assim, ele despertou a raiva do grande Zeus, que enviou o deus da Morte, Tânato, para levá-lo ao mundo subterrâneo. Porém o esperto Sísifo conseguiu enganar o enviado de Zeus. Elogiou sua beleza e pediu-lhe para deixá-lo enfeitar seu pescoço com um colar. O colar, na verdade, não passava de uma coleira, com a qual Sísifo manteve a Morte aprisionada e conseguiu driblar seu destino.
Durante um tempo não morreu mais ninguém. Sísifo soube enganar a Morte, mas arrumou novas encrencas. Desta vez com Hades, o deus dos mortos, e com Ares, o deus da guerra, que precisava dos préstimos da Morte para consumar as batalhas.
Tão logo teve conhecimento, Hades libertou Tânato e ordenou-lhe que trouxesse Sísifo imediatamente para as mansões da morte. Quando Sísifo se despediu de sua mulher, teve o cuidado de pedir secretamente que ela não enterrasse seu corpo.
Já no inferno, Sísifo reclamou com Hades da falta de respeito de sua esposa em não o enterrar. Então suplicou por mais um dia de prazo, para se vingar da mulher ingrata e cumprir os rituais fúnebres. Hades lhe concedeu o pedido. Sísifo então retomou seu corpo e fugiu com a esposa. Havia enganado a Morte pela segunda vez.
Sísifo recebeu esta punição: foi condenado a, por toda a eternidade, rolar uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível, invalidando completamente o duro esforço despendido.

O desprezo pelos deuses, o ódio à Morte e a paixão pela vida lhe valeram esse suplício indescritível em que todo o ser se ocupa em não completar nada. Porém podemos ver essa tragédia de várias formas. Considero, no entanto, que o mito revela toda a alegria silenciosa de Sísifo em não se deixar dominar por algo que não fosse a própria vida. Até mesmo seu castigo lhe pertence. Seu rochedo é sua questão. Ele não fica no sopé da montanha! Sempre reencontra seu fardo. Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos.

É ver a vida como dádiva, independente de tudo, até mesmo de sua repetição entediante. Voltando para o Eclesiastes, o sentido da vida não está no depois, está no enquanto. Trata-se do pão de cada dia. Quem valoriza a vida, sabe que a morte não nos cai bem, e isso não é negar sua inevitabilidade.

Viver a vida com base nessa paixão imanente, é abandonar as competições que pretendem conquistar o eterno. É abandonar a filosofia do acúmulo, e cultivar a alegria, sabendo que para isso é bom companhias. E por fim cultivar a realização mais do que a reputação.

Viver a vida, é vencer a religião que oferece consolos metafísicos em detrimento da vida. É vencer o dinheiro com seus enganos de permanência. É preciso aprender a caminhar com as incertezas, com a imprecisão. É preciso aprender a desfrutar o efêmero. É preciso amar.
Sem amor não há vida. O amor é o sentido da vida. Quem ama diz mais sim do que não. Está mais aberto do que fechado, celebra mais do que sofre, e não por alienação, mas por decisão.

E por fim Tema a Deus, é conselho final de Eclesiastes. Louve a Deus mesmo que Ele não caiba na nossa busca de sentido e lógicas. Deus é grande justamente porque não cabe em nossos discursos.

Aproveita a vida! Faça o rochedo trágico do destino, a sua escolha e invente o processo! Eis os conselhos de Eclesiastes e do Mito de Sísifo.

Ivo Fernandes

5 de fevereiro de 17

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