A Totalidade Divina e o Totalitarismo


No texto anterior sobre o juízo contra o próximo eu falei sobre a visão da totalidade para a cura do “particularismo” que é a raiz de todo juízo e preconceito. Essa semana assisti um filme que trata do tema do totalitarismo, chamado “o doador de memórias”, o que imediatamente me fez lembrar de diversos outros filmes como, “divergente” e “jogos vorazes”. Todos estes filmes trazem um drama filosófico, onde o papel do Estado é questionado, nossa visão de mundo também. Apresentam sociedades ideias sempre depois de uma situação de guerra e caos que quase dizimou a humanidade que no entanto se revelam totalitaristas.

E aqui cabe definirmos totalitarismo: “Sistema político no qual o Estado, normalmente sob controle de uma única pessoa, político, facção ou classe, não reconhece limites à sua autoridade e se esforça para regulamentar todos os aspectos da vida pública e privada, sempre que o possível.” Eric Hobsbawm.

No caso do filme “O Doador de Memórias”, adaptação do best-seller de Lois Lowry, a questão é: qual o preço que aceitaríamos pagar para criar um mundo livre de guerras, de violência e de todos os males que atacam nosso planeta? No filme a resposta é a criação de uma sociedade aparentemente perfeita nascida da exclusão e do bloqueio de memórias coletivas, junto com a inclusão de ideias que fazem cada pessoa acreditar que a conformidade, ou seja a negação da singularidade, é a base da paz.

Fica a cargo da figura do Doador (Jeff Bridges) a função de guardar todas estas memórias de um passado marcado por guerras e violência, mas também por alegrias, festas, casamentos e tudo o mais que o nosso mundo oferece. A história começa para valer quando Jonas (Brenton Twaites) é selecionado para se tornar o Recebedor de tais memórias. O garoto, angustiado por ter descoberto praticamente uma nova forma de se viver, decide mudar a estrutura social de todas as comunidades, fazendo-os retomarem estas memórias.

Diferente de quase todos os filmes que trabalham essa ideia, este não apresenta um governo ditatorial e uma sociedade realmente oprimida. Essa é a grande questão da história, já que, de fato, somos apresentados a comunidades livres de guerras, de violência e de sentimentos egoístas. As pessoas são levadas a tomar decisões pré-ajustadas, mas não há, de modo algum, uma opressão, uma estrutura que as obrigue a tomar tais atitudes. A chefe anciã, interpretada de modo eficaz por Meryl Streep, não é uma ditadora, é somente alguém que defende o atual sistema. Não há nela, nem em ninguém, uma figura ameaçadora, poderosa ou amedrontadora.

Alguns elementos se destacam, cada membro desta comunidade, depois de exaustivamente observado pelos anciãos desde seu nascimento, ao completar certa idade, é encarregado de uma função específica de acordo com a vocação revelada em sua trajetória. As pessoas atuam na profissão escolhida pelos anciãos, não fazem sexo (os bebês são criados artificialmente) e moram num mundo literalmente em preto e branco.

Porém o jovem Jonas constata que toda aquela aparente harmonia é fruto da ignorância. As pessoas nem sequer são capazes de enxergar as cores, sendo privadas de sentimentos comuns à humanidade. Todos os dias, assim que acordam, submetem-se a um medicamento convencidas de que estão sendo poupados de todo e qualquer sofrimento.

Semelhantes a esses filmes desde os tempos antigos, a imposição da igualdade de condições aos governados constituiu um dos principais alvos dos despotismos e das tiranias. O totalitarismo que se preza deve chegar ao ponto em que tem de acabar com a existência autônoma de qualquer singularidade, mas isso não se dá sem um aparelhamento ideológico que conduz as massas a serem a força de tais sistemas. Hitler, que conhecia muito bem essa interdependência, exprimiu-a certa vez num discurso: "Tudo o que vocês são, o são através de mim; tudo o que eu sou, sou somente através de vocês".
Conscientes do colapso social a ideologia totalitarista oferece às massas de indivíduos atomizados, indefiníveis, instáveis e fúteis um meio de se auto definirem e identificarem, não somente restaurando a dignidade que antes lhes advinha da sua função na sociedade, como também criando uma espécie de falsa estabilidade que fazia deles melhores candidatos à participação ativa, o que também pode ser visto em outro filme chamado “A onda”.

Assim em nome de uma sociedade perfeita abrimos mãos da nossa liberdade individual e fomentamos o controle ao ponto de acabarmos com nossa singularidade. Uma vez inseridos no sistema seremos mantidos nele por meio das drogas que nos prescreverão e nos será ministrada diuturnamente, quer pela mídia, ou mesmo pelas instituições de ensino. E quando alguém ousar romper com os padrões o tacharemos de inimigo.

E o que tudo isso tem a ver com a religião? Em todos os totalitarismos históricos surge uma raiz religiosa mas os mais sanguinários foram os que se reclamaram de origem divina. Não é preciso recuar a Nabucodonosor ou Dário, para quem uma simples palavra deles era sagrada, para nos darmos conta da perversão da religião.

Os tribunais medievais são um exemplo de crueldade alimentadas pelo direito divino. O nazismo e o fascismo foram regimes totalitários que não só se reclamaram da vontade divina que queriam cumprir como atraíram o apoio religioso e a mentalidade anti-semita de diversos setores do cristianismo.

Dos totalitarismos só o comunismo não se reclamou da vontade divina e até combateu as religiões. O estalinismo, a mais demente e cruel face do comunismo, combateu a religião, mas idolatrou Stalin, e deificou o Estado que, de fato, reproduziu o Deus do Antigo Testamento: despótico, violento, vingativo e cruel. E ainda hoje, as ditaduras existentes encontram nas teocracias que subsistem o expoente máximo da perversão e da crueldade
E não é preciso muito para identificarmos as origens do Totalitarismo moderno e das práticas de controle do pensamento no século II com a institucionalização da Igreja Católica e o surgimento da ortodoxia que iria identificar heresias e hereges. Logo é quando os diversos cristianismos primitivos com sua pluralidade de pensamento é sufocado com a institucionalização da Igreja e que os padres como Tertuliano de Cartago pressentiram a necessidade de racionalizar os dogmas da religião através de termos como “ortodoxia” oposta da “heresia” que surge a necessidade do controle do pensamento por meio de uma forma de Poder. Além de conquistar terras, escravos e riquezas, pela primeira vez as estratégias políticas de dominação passaram a ter necessidade de reprimir por diversos instrumentos qualquer pensamento divergente da norma.

No cristianismo institucionalizado um inimigo já não era definido pelos seus atos, mas por seus próprios pensamentos! Como a ala ortodoxa cresceu e se associou ao governo romano, volumosos textos foram escritos sobre como reconhecer, decifrar e corrigir aqueles que haviam feito uma escolha longe do “bom pensamento”. Pela primeira vez na História uma forma de pensar poderia ser criminalizada pelo Estado.

E isso não é só presente no catolicismo medieval, também no protestantismo. Basta assistir as “Bruxas de Salém” para se ter uma ideia.  A prática da tortura, tribunais simulados, provas plantadas, o incentivo à delação, execuções públicas exemplares, entre outras técnicas, sofisticaram-se ao ponto de o medo ser o suficiente para literalmente fazer populações inteiras se tornarem ortodoxas ou “politicamente corretas”.

Porém nenhum esquema totalitarista seja social ou religioso ganha apoio do Evangelho de Jesus de Nazaré. Pois se as forças desses sistemas estão na tentativa de se livrar do caos por meio de uma unificação de massas e sufocamento das singularidades, estabelecendo um pensamento único e uma moral universal, o ensino de Jesus aponta numa direção totalmente inversa, pois nele nunca nos foi apresentado um sistema de mundo ideal.

Jesus nunca idealizou o mundo, pelo contrário ele nos chama o tempo todo para o chão da existência com toda a confusão. Nunca pediu para negarmos a dor ou fugirmos dela. Nunca apresentou a natureza humana como capaz de ser domada por sistemas morais com a finalidade da felicidade. Jesus sabia que o homem era belo e terrível e por isso mesmo nos ensinou em vez de caminhos totalitaristas o caminho da totalidade, ou seja de enxergarmos a diversidade que há no mundo e buscarmos a fé, a esperança e o amor.  

Jesus nos chama a romper com a distopia imposta pelo sistema e avançar para além de suas fronteiras, vislumbrando e desbravando a utopia do reino de Deus. E o reino de Deus não é um reino de anestesiados e nem de ignorantes. Ele mesmo, chamado homem de dores, vi o caos do seu tempo mas nunca perdeu a esperança, pois em meio a tragédia sempre enxergou a beleza. Ele é o que se recusa tomar a mistura oferecida pelos soldados romanos que visava amenizar sua dor. A dor, afinal, é não uma maldição, pois ela faz parte desse grande todo onde também está a alegria.

Portanto, todo sistema que mesmo na promessa de um mundo perfeito destrói singularidades é um sistema diabólico, são sistemas totalitaristas, porém aqueles que sabendo que Deus é a Totalidade e nele estão todas as singularidades e por isso mesmo respeitam as diferenças e amam o próximo são filhos do Reino. Este é o Evangelho!

Ivo Fernandes

17 de setembro de 2014

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