O filósofo psicanalista



Todas as vezes que sou convidado para dar uma palestra me pedem um currículo. Como eles devem me apresentar? Confesso, esse é um momento sempre tenso. Afinal, essa informação envolve muitas questões. O que um título diz a meu respeito? O que um título, aliás, diz do próprio título? Se eu tivesse que transformar em títulos minha vida e experiências não caberiam em uma peça publicitária. Assim, quase sempre mudo a forma como me apresento, pois, talvez, essa mudança fale mais de mim do que o congelamento de um título. Mas considerando justamente essa característica, o título mais apropriado seria o filósofo psicanalista.

Ser filósofo e psicanalista é justamente não ser um É, mas um sendo. É um lugar mais de perguntas que respostas, de busca do que de encontro. O que vem a ser um filósofo? O que vem a ser um psicanalista?

Quando faço uma retrospectiva da minha vida, sei exatamente porque sou um filósofo psicanalista. Enquanto filósofo sou aquele que possui uma questão, uma busca, uma sede de saber, um apreço pela verdade, uma inquietação, e a ousadia de duvidar de tudo, especialmente de mim. Enquanto psicanalista, não sou médico, nem sacerdote, nem professor, nem conselheiro. Não tenho a resposta, nem sei de tudo. Então o que sou? Sou aquele que se permitiu ir ao encontro de suas próprias fantasias e que desse lugar de experiência fala a outros que desejam a mesma coisa. Ser psicanalista é ter alcançando um estado de independência de julgamento e coragem intelectual, e isso não é possível com a aquisição de um título formal.

Para mim, o filósofo e o psicanalista se encontram no amor à verdade e na busca paciente por ela. Não é uma questão de estar pronto, acabado, mas justamente de perceber-se incompleto. Quem não sabe da falta, de sua própria falta, não pode ser um psicanalista, muito menos um filósofo.

Esse é o paradoxo de quem ama a verdade. Não se cansa de buscá-la mesmo que saiba que jamais a encontrará. Ser filósofo é buscar a verdade sem jamais dela se achar senhor. Ser psicanalista é buscar a verdade convivendo com a impossibilidade de alcançá-la.

Sou filósofo, sou psicanalista, e sou sendo, pois vou me constituindo a cada novo passo, estudando, aprendendo, raciocinando e, tantas vezes, racionalizando, mas acima de tudo me questionando. Na busca da verdade, nada descarto, nem mesmo a mentira. Aliás, quem comigo anda já ouviu eu dizer – não existe mentira. Tudo é verdade sobre nós.

Sou filósofo psicanalista porque me interesso por tudo. Como psicanalista, faço das sessões um campo infinito de descobertas. Emoções, imagens, discursos, o que vem do outro e o que de mim está em jogo. E o alvo é que daquele ambiente analítico saiam duas pessoas capazes de conviver consigo mesmas, que se admitam limitadas, insatisfeitas, mas que continuem lutando para viver bem.

Foi na minha análise e é na minha clínica que me tornei e me torno um psicanalista. E ser psicanalista é ser arquiteto de uma obra que nunca termina. É ser um navegante, que sabe que navegar é preciso, navegar por oceanos e enfrentar as tormentas das noites escuras. Um psicanalista que não esteja pronto para negar o que sabe é como um filósofo que não está pronto para pensar.

Sou filósofo psicanalista porque amo a vida exatamente como ela se apresenta. Reconheço a contradição que sou. Em mim habitam mundos! E estou sempre aberto para as surpresas que o encontro desses mundos provocam. Como psicanalista aprendi a ter coragem de ser eu, ou foi o contrário?! Como poder ser psicanalista aquele que não tem coragem de ser o que é? De todas as curas possíveis, a cura da vergonha de si é o maior presente que nos oferece o processo analítico.

Como filósofo afirmo a existência do destino, como psicanalista afirmo a possibilidade de ressignificar sua existência. Isso não é uma contradição, mas a mais profunda libertação, pois mistura a certeza de nossa impossibilidade com a certeza de nossa força. Eu posso ser o que quiser ser dentro dos limites de ser.
Sou um filósofo psicanalista porque procuro investigar o desconhecido, o que vai além da realidade sensorial, e também porque só se faz filosofia filosofando, e só se faz uma analista em análise.

Voltando à questão dos títulos, o que esse assumido diz sobre mim? De mim, sei e digo, busco a verdade, especialmente no encontro com o outro. Como filósofo ouso saber. Como psicanalista ouso ser eu, ou ainda ser os tantos eus que me habitam. Não sou feito de títulos, mas de experiências e pensamentos. O que ofereço como psicanalista é um caminho de vir-a-ser. É como um convite para viajarmos juntos na direção do autoconhecimento.

A viagem para si nem sempre é prazerosa, aliás, quase sempre não é. Somos conduzidos pela civilização a não gostar do que encontramos em nós e tentamos de todas as formas arrancar de nós o que nos incomoda. A missão, portanto, é aprender a gostar de si na medida em que se encontra um monte de coisa de que não se gosta, para que no fim se saiba ser sem se ofender com o que se é.

Ivo Fernandes
5 de maio de 2020

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