Alma Roubada


Durante as últimas reuniões da Estação do Caminho da Graça falei sobre a questão da identidade e da representação, que levantou muitas questões resultando no texto “identidade?! De Deus”. Porém as questões não se esgotam. Ao afirmar que a identidade não é algo dado, pronto, acabado a qual simplesmente seguimos como lei, não quer dizer que não tenhamos uma unidade no eu. Sim, há um eu como plataforma donde se pode a dança das máscaras, donde surge nossas personalidades. Podemos chamar esse eu de alma. Logo, o eu não é uma representação, mas é uma condição que a permite.

Existe algo nessa alma que seja dela mesma? Sim! Trata-se daquilo que garante a unidade do ser, fazendo com o que, independente de quantas máscaras tenhamos saibamos ainda do eu que somos. E este eu deve permanecer livre das máscaras para que possa fazer sua gerência. Quando a alma é capturada então perde-se o eu dinâmico e livre e torna-se escravo da imagem.

O curta-metragem “Alma” de Rodrigo Blaas (2009) me foi útil para explicar aos meus alunos tais questões! Alma, a pequena personagem, trilha sua saga através de uma busca incessante pelo contato com uma boneca idêntica a ela e que ao final, acaba roubando a de si mesma.

O drama começa com “Alma” passeando distraída pelas ruas desertas e geladas até se deparar com uma parede repleta de assinaturas de outras pessoas e crianças. Nosso nome e nossa assinatura são símbolos de identidade. Isso faz com que ela também sinta vontade de deixar sua marca naquele lugar. Neste momento, do outro lado da calçada surge na vitrine de uma loja, uma boneca idêntica a ela, que a seduz de modo surpreendente.

Interessante! De deixar a marca de uma identidade – o nome – ela é seduzida para outra – a autoimagem. O desejo de si mesmo, de possuir o que seria ela mesma. Possuir a imagem de si.

Neste caso, não há como não associar a personagem ao mito de Narciso. Em sua história, o belo jovem apaixona-se por sua própria imagem e ao tentar beijá-la cai na água e se afoga. Quando o personagem mitológico encontra sua imagem refletida na água se vê revelado por meio do seu reflexo. Porém, por não conseguir diferenciar e compreender o que vê, confunde sua imagem projetada fora de si como um OUTRO que deseja possuir e seu encantamento faz com que isso lhe custe sua própria vida.

O mesmo ocorre com Alma, que encantada com a boneca idêntica a ela não resiste a querer possuí-la. Ao tocá-la, a personagem é transportada para dentro do objeto e quando percebe o ocorrido, de dentro da sua nova casa, entende que outras almas também foram roubadas. Uma nova boneca é elevada na vitrine, à espera da próxima vítima.

Qual a consequência de desejar a imagem de si mesmo? Perder a alma! Pois o si mesmo desejado não é alma, mas uma representação, uma identidade, uma máscara. Ser o si mesmo, é deixar de ser eu. Por essa razão está proibido fazer imagem de qualquer coisa que seja.

Buscar a imagem de si é idolatria. Não são as imagens de nós mesmos o que somos. Essas imagens são forjadas na relação entre eu e o mundo, são imagens necessárias, mas não podem deixar de serem dinâmicas. Não se pode furtar a alma de sua liberdade estabelecendo o reino da imagem. Sim! Não é livre aquele que se tornou a imagem de si. A alma só é livre mantendo-se como plataforma para vários devires.

Concluo com essa poesia de Manoel de Barros

Retrato do artista quando coisa

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.

Ivo Fernandes
15 de maio de 2016


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