Uma sexta-feira santa


Eram as primeiras horas da madrugada da sexta-feira chamada santa. Meu coração se encheu de um sentimento estranho, uma mistura de tristeza com esperança, de paz com inquietação. Há pouco havia brincado com familiares, havia curtido os nove anos de minha filha mais velha. No fim da noite da quinta-feira participei de uma conversa sobre Deus, com uma espiritualista e uma cristã-mórmon.


No começo da conversa ríamos até juntar-se a mesa alguns cristãos-evangélicos que junto com a cristã-mórmon demonstravam saber tudo sobre Deus e sobre o que ele pensa. Não podia mais participar daquilo, o que falasse pareceria mais uma receita sobre Deus.E o que sei sobre Deus?


Entrei na sexta-feira santa com meus pensamentos presos a pergunta que fizera. Lembrei-me de minha infância e da trajetória até aqui. Aos oito anos começava minha jornada de identificação cristã. Nessa idade era o que os outros diziam que era. Alguns acreditavam profundamente em algo a meu respeito que eles chamavam de chamado, o que mais tarde depois de muita luta também passei a acreditar, até entender que não há para mim outro chamado que não seja viver para aquele que por mim morreu e ressuscitou.

Aos 12 anos não sabia como me identificar. Tinha vergonha em alguns círculos de me identificar como evangélico. Hoje não é apenas em alguns círculos. De fato, não quero mais nenhuma identificação com este movimento.


Aos 15 anos minha vida mudou, comecei a pregar. Em pouco tempo já era conhecido em várias igrejas dos bairros próximos ao meu. Pregava, e não me recordo de nada que tenha sido de fato algo que tenha procedido do meu coração. Falava muito do que ouvia, mas desde essa época meu coração se inclinava para a mensagem da Graça. Isso, desde então, me trouxe problemas.

Arranjei confusão com líderes da minha igreja por tratar de assuntos como a masturbação de uma maneira tão diferente deles. Afinal nunca disse que tal ato era pecado e me recusava condenar os praticantes de tal ato, à medida que falava de um viver equilibrado.


Aos 18 anos fui consagrado ao pastorado. Foi na primeira experiência como pastor que aprendi mais sobre a vida, e comecei a ver que não tinha todas as respostas para todas as perguntas que me faziam. Era uma comunidade muito pobre, cheias de desafio e problemas a maioria deles sem solução aparente.

Nesta idade comecei a estudar teologia. Isso me empolgou, e até hoje me empolga. No entanto, minha viagem na teologia também me trouxe problemas. Nos primeiros anos estudei tudo sobre as doutrinas defendidas pelo ministério que fazia parte. Sabia tudo, mas aquilo não me encantava, e nunca consegui falar com paixão daquilo que chamavam de ortodoxia, o que hoje sei que não deveria carregar esse nome.


Depois de um tempo, conheci a teologia reformada. Foi emocionante a leitura, mas não consegui conviver com as certezas dessa teologia. Começava a ficar claro que não conseguia amar a Deus se ele fosse daquela forma.

Conheci a teologia liberal, neo-ortodoxa, neoliberal, libertação, latino-americana, secular, feminista, negra, inclusiva. Passei a me dedicar aos estudos do Novo Testamento. Li muito sobre a questão do Jesus histórico. Avaliei os textos em busca de tal Jesus. Alguns anos de grego, o que foi abandonado, quando abandonei também tal busca.


Aos 23 anos numa tarde em frente ao mar, consultei meu coração. A partir daquele dia gostaria de ser fiel a minha consciência, pregar o que estava em meu coração. Isso me levou a sair da igreja onde havia sido consagrado e sucessivamente das três próximas igrejas que participei. De fato não havia espaço para mim entre aqueles que viam na minha mensagem uma perversão.

Aos 25 anos já não estava mais entre os evangélicos e fui tratado como herege por todos aqueles que outrora me chamavam de amigo. A coisa piorou quando na minha caminhada associei-me com os do Caminho, entre eles o Caio Fábio a quem também haviam declarado herege.


Tive que deixar alguns empregos. Tive que ver amigos me tratando como desconhecido. Tive que ver meu nome sendo difamado na boca de muitos. Tive que experimentar a mais profunda solidão e foi nesse período que de fato meu coração foi plenamente tomado pela Graça. Já não havia mais nenhuma a barganha a fazer com nada e nem com ninguém.

Continuei pregando o Evangelho e agora mais livre do que nunca. Continuei dando aula de teologia e agora de fato sendo um teólogo que não tem a presunção de encaixar Deus em meus finitos pensamentos.


E hoje, nesta sexta-feira santa sinto-me livre de ter que defender o que quer que seja para quem quer que seja. Afinal, o que sei sobre Deus? O que sei Dele na verdade não serve para ninguém, pois o que sei é fruto de um coração alcançado misteriosamente. Sei o que sei para mim. O que tenho a dizer para quem serve com convicção o deus do terror? Nada.

A fé que tenho, de fato tenho para mim mesmo. O caminho que sigo, de fato sigo só, mesmo sabendo que há companheiros de jornada.


Hoje, abri minha caixa de emails e vi alguns textos de amigos. Poderia participar e falar alguma coisa, mais o que? O que creio, creio para mim, mas não sou a verdade e nem mesmo o guardião dela.

Hoje quero deixar cada um seguir seu caminho. Seguindo o meu caminho, vou falando da boa-nova do amor do meu Deus por todos os homens e de salvação gratuita para todos, quem quiser ouvir ouça, quem não quiser não ouça. Não pensem que tentarei converter alguém a alguma coisa. Não creio em coisas, creio num Ser, e com ele não adianta conhecimento, apenas relacionamento, e isso é mistério.


Quero de fato respeitar a todos, visto que em muitos momentos, falei apaixonadamente e acabei por passar a impressão que era detentor da verdade, senhor da revelação. Não! Eu não sou!

Para respeitar preciso confessar que não posso mais participar de rodas onde Deus seja debatido. Não tenho um Deus para debater, e nem para colocar na arena das verdades-humanas. Na verdade não tenho um Deus para ofertar aos outros. No máximo posso falar da convicção do meu coração e da paz que procede Dele. Ou seja, só posso falar de mim e não de Deus.

Aos amigos que me pedem para participar das discussões, perdoem-me, não posso. Como teólogo posso participar de tudo que diga respeito a nossa limitada e pobre compreensão do fenômeno religioso, mas não posso discutir quem está acima de todo conceito.


O caminho continua sendo para mim. O Caminho é da Graça e na Graça. Os homens que caminham neste caminho são por mim admirados e amados. Mas ninguém se sinta obrigado a nada, por me ver fazendo algumas coisas. O que faço, faço para mim. Sigo com alegria na companhia destes homens que como eu, não têm outro caminho a fazer.

Ivo Fernandes
Sexta-feira, 10 de Abril de 2009

Comentários

Anônimo disse…
Amado Ivo,
Caminho pedregoso esse dos que agarram-se à graça de Deus e não desejam mais nada. Mas é um caminho que conduz à paz. Portanto não abra mão disso. Embora sua decepção com a igreja seja uma realidade cada vez mais cruel e viva, vejo em você um Pastor que muitas denominações deveriam acolher se não tivessem se deixado mundanizar.
Que Deus continue falando bem intimamente ao seu coração, e se puder de vez em quando, conte-nos um de seus maravilhosos segredos que Ele compartilhou contigo.

Abração!!!
Anônimo disse…
Meu professor querido,

Agradeço por vc ter expressado um texto tão sincero e singelo que nos comove, a tamanha naturalidade de suas palavras que procede do coração! Vejo que vc está livre, sem os fardos pesados em querer agradar os homens, sem sufuco e sem angustia, em trilhar o caminho da graça de Deus em amor. O que importa é que vc tem Cristo vivo dentro de vc. Concordo com senhor, na indagação: quem somos nós para impor alguem o conceito de Deus e de verdade. Só temos ponto de vista, e esforçamos em repeitar a opinião dos outros. Continue pregando as boas novas de alegria, para encher de risos os corações das pessoas. E estou tentando ter uma vida de equilibrio, sem levar a serio as coisas do mundo!! Suas mensagens sempre muito edificadoras!!Abraço,Renata Peixoto (aluna da Fatece).

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