CrerSer – O caminho da Graça


Cheguei aos meus 36 anos, e sei que isso é quase nada comparado a tantos ao meu redor que já viveram o dobro desse tempo. Porém cheguei aqui passando por coisas que muitos não passaram mesmo tendo o dobro da minha idade. Já foram abandonos diversos, luta constantes contra doenças pela vida, experiência de quase-morte, 2 casamentos, 3 filhas, 21 anos de completa autonomia, 18 anos de pastoreio, 16 de magistratura, 10 de clínica.

Mas apesar dos números ainda estou em processo. Sou obra inacabada, uma poesia que ainda não se completou. Comecei a estudar teologia aos 15 anos, depois fui associando esse estudo a sociologia, pedagogia, psicanálise, filosofia e história, o fruto disso, e ainda não concluído, é uma viagem onde Deus foi deixando de ser, para mim, um conceito forjado na teologia grega para ser aceito como o Mistério.

Nesses anos me identifiquei como católico por mera força da tradição e por estudar na infância numa escola confessional, depois como evangélico, me confessei calvinista, batista, presbiteriano, por fim pentecostal, até não caber mais no próprio conceito de evangélico, nem protestante, e não raras vezes nem cristão.

Mas o que me fez mudar tanto? O fato de não ter vivido sem viver. Ou seja, eu tomei do cálice da existência e fui percebendo desde cedo que as verdades construídas no interior dos seminários não correspondiam a vida. Lembro-me que aos 18 anos quando do início do meu ministério pastoral, já fui desafiado pelo sofrimento humano e pelas desgraças sociais, e tudo que havia aprendido até ali não fizeram sentido. Simplesmente os discursos religiosos não correspondiam aos reais problemas enfrentados por mim, numa das comunidades mais pobres que já pastoreei.

Por essa razão me tornei um filósofo da existência. Fiz da própria vida minha escola, e das pessoas que cruzaram meu caminho meus melhores professores. Apesar de amar os livros, não foram eles minhas maiores fontes. Apesar de admirar vários pensadores, também não foram eles meus guias. Isso me custou não seguir carreira acadêmica como desejava, não tinha bagagem teórica. Afinal o que eu sabia, senão aquilo que a vida havia me ensinado?

Então, decidi fazer algo simples comparar o ensino das escrituras com a realidade, e foi a poesia que entrou na minha vida como revelação, ela mais do que qualquer outro tipo de saber é que melhor traduzia para mim a realidade. Assim, o texto bíblico foi deixando de ser um livro chato de religião e foi se tornando uma maravilhosa carta de amor, e desta forma conheci a Graça, o ensino de Jesus e a figura de Deus como Pai, Mãe, Irmão e Amigo.

A poesia me salvou, e salvou dentro de mim a fé, a esperança e amor. Por meio dela assumi um caminho sem volta, o caminho da Graça. Um caminho onde não tenho a pretensão de codificar o divino, e mesmo assim estou disposto a obedecer ao chamado do Evangelho que me conduz a mansidão que luta contra as injustiças. Um caminho onde o ódio é vencido, onde a bondade é desenvolvida, a integridade é a meta. Um caminho que me torna cada vez mais tolerante com pessoas, e mais sereno.

Nessa minha trajetória já fui seduzido por várias outras estradas que me prometiam, fama, glória, sucesso e coisas afins. Mas minha inspiração é o Nazareno. E por essa razão sou como sou. Insisto que o melhor caminho é o da consciência e não da coerção ou das ameaças ou das barganhas.

Nessa mesma trajetória o juízo contra o próximo foi desaparecendo, não estranho nada que é do homem. Abandonei interpretações e assumi o lugar de ouvinte. Porém, não costumo ter a mesma sorte. Sou constante interpretado, e em geral sem direito a explicações.

Passei a ser mal visto nos arrais evangélicos que me conheceram e até entre os mais chegados não escapei do juízo. Quantos amigos nesses tempos tem se afastado, uns se afastam por que me consideram desviado, e outros, pasmem, porque sou crente demais.

E de certa forma o meu caminho tem sido na maior parte do tempo um caminho solitário. Me acusam de não me comportar de maneira decente a um líder religioso, e talvez de fato tenham razão. Não sou coerente. Nem compromisso com ela tenho. Minha busca é pela verdade, e nesse caminho vou me pegar em contradição muitas vezes. Se me pedirem para me definir, não saberei. Quem sou? Em que creio? Crer, Ser. Eu sou um caminhante, e creio no Caminho.

Apesar disso, sigo firme, deixando para trás embaraços, cinismos, ou qualquer mensagem que não carregue possibilidade de misericórdia real para todos. Se isso me faz um herege, desviado ou coisa assim, que seja. Meu caminho é Crer Ser. E sei que ainda engatinho nessa jornada espiritual.

Quando descobri que Deus não pode ser tão pequeno e cruel quanto me ensinaram não foi para a negação da fé que caminhei. Se abriu um caminho novo, onde o que mais desejo é conhecê-lo.

Hoje minha missão é, conforme tenho conversado com os irmãos que se reúnem comigo para lermos as escrituras, permitir que a criança gerada em mim pelo Espírito Santo vença os preconceitos e atitudes indignas do meu velho homem. E que saiba transitar nesse mundo, ciente que minha alma é forjada em outro. Sim, somente quem está no mundo mas sabe que não pertence a ele é o mesmo que vence o mundo.

Esse é o meu caminho. Qual o seu?

Ivo Fernandes
26 de março de 17


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