A ética do suicídio e o caminho possível
Em 2008 ministrei um seminário sobre “a ética do suicídio e o caminho possível”, o que produziu uma grande curiosidade por parte de meus alunos e dos que acompanham meu trabalho sobre a relação do termo ética e suicídio.
O texto a seguir é uma adaptação do que falei naquele período!
Sei
que falar desse tema é de muita complexidade. Em alguns ambientes essa
complexidade aumenta, como por exemplo nos religiosos. Na maioria desses
lugares o tema é tratado com leviandade e superficialidade, por revestirem o
mesmo com a moral ou ideologias e pouca ciência e psicologia.
Porém,
o que marca minha trajetória como mentor, professor, terapeuta, psicanalista e
palestrante é a seriedade com que trato todos os temas. Sou um pesquisador
daquilo que pretendo abordar.
O
tema suicídio entrou em minha rota de pesquisas em razão do crescente número de
pessoas que me procuravam com ideação. E com a proximidade dos casos,
familiares, alunos e pacientes. É impossível não mergulhar nesse terreno se
pretendemos compreender e ajudar a alma de um sujeito,
O
suicídio é definido por M. Levy em seu boletim de psiquiatria - Introdução ao
estudo do suicídio- como auto eliminação consciente, voluntária e intencional.
Num sentido mais amplo, o autor inclui os processos autodestrutivos,
inconscientes e crônicos. Há graduação da intencionalidade do ato suicida que envolve:
desejo de morrer, ideação constante, comunicação sobre a intencionalidade de se
matar, tentativa e o ato suicida. Em muitos casos, observa-se a ambivalência
entre o desejo de viver e morrer (Kovács, 1992).
Ou
seja, o suicídio está diretamente ligado a ética de ser do sujeito, sua ligação
livre com o mundo a sua volta.
Nas
diversas literaturas encontramos histórias de suicidas, até mesmo nas
escrituras bíblicas, mesmo que não apresente nenhum mandamento ou orientação
direto sobre o assunto. Os casos são de Abimelec (Juízes 9); Saul e seu
escudeiro (1Sm 31); Aitofel (2Sm 17); Zimri (1Rs 16); Sansão (Jz 16) e Judas
(Mt 27). Todos os casos os indivíduos tomaram a decisão diante do insuportável,
da humilhação, da vergonha, da derrota, da dor.
Camus,
em suas obras, afirma que só há um problema filosófico que realmente importa:
discutir se a vida vale a pena ser vivida. E diz isso, considerando o absurdo
da existência sem sentido.
Na
Obra “O mito de Sísifo” ele nos apresenta a questão do absurdo. Na mitologia, o
herói Sísifo foi condenado pelos deuses a realizar um trabalho inútil e sem
esperança por toda a vida: empurrar sem descanso uma enorme pedra até o alto de
uma montanha de onde ela rolaria encosta abaixo para que o herói mitológico
descesse em seguida até a encosta e empurrasse novamente o rochedo até o alto,
e assim indefinidamente, numa repetição monótona e interminável através dos
tempos. Viver sem expectativas, sem ambições para o futuro, não fazer da
existência um tempo de profundas experiências, mas deixar-se levar pela
melancolia de um absurdo que não liberta e sim amarra, é viver como Sísifo no
infortúnio do dia a dia.
Observa-se
que neste mito acontece um confronto com a ação humana e a realidade. Sísifo é
um personagem tomado pelo absurdo, não tem nem passado nem futuro, ele será
sempre o presente que se deixa levar pela mesma monotonia. “Esse mito não é
apenas o Mito de Sísifo, ele é o mito decisivo. Compreendê-lo é
compreender a condição humana e formular a questão decisiva: a questão do
suicídio.” (RAMOS, 2007, p. 2).
Seria
um meio de saída dessa monotonia de vida o homem abandonar-se no suicídio,
buscando assim a liberdade? Por meio do suicídio o homem chegaria a uma falsa
esperança de conseguir acabar com o absurdo. Para muitos, a morte é a única
forma de fugir e sair do absurdo. Para Camus um gesto de suicídio acontece no
silêncio do coração. O homem deixa consumir-se pelas irracionalidades e faz
matar-se.
Na
perspectiva do suicídio existem a consciência e a esperança. Nisto diante deste
mundo complexo e incompreensível, diante da cotidianidade da vida, onde tudo
acabará com a morte, surge a consciência. A consciência é a busca pela nitidez.
Já com relação à esperança, trata-se de encontrar outros caminhos, outras
saídas. Diante do suicídio está o conflito, a ilusão da liberdade. Com isso o
homem quer suicidar-se como forma de alcançar a liberdade da rotina do
cotidiano, a liberdade de uma vida marcada pela irracionalidade. Mas o grande
problema é o homem achar que com a morte acabaria assim o absurdo existencial.
Dito
tudo isto, podemos perceber que a compreensão popular que a associa o suicida a
insanidade não é o melhor caminho para lidar com o assunto. Dá para perceber
uma ética (um modo de ser), um modo de exercer a liberdade, porém diante do
Nada. Ou seja, ser livre porém só, em mundo sem sentido.
Sob
a força de tal ética, quem poderia legislar a favor daquele que se vê só? Associado
a esse tipo de pensamento somam-se as depressões, ilusões, fracassos pessoais,
uso de drogas entre outros. Que dor é mais intolerável: a que é provocada por
doença com sintomas incapacitantes ou a solidão, o desamparo ou vazio
existencial? Como avaliar a intensidade do sofrimento?
Ramón
Sampedro (2005), no Cartas do inferno, discute o direito de escolher a
morte quando a vida fica indigna. Esse livro foi base para o filme Mar
adentro, de Alejandro Amenábar. No prólogo do livro, Sampedro (2005, p. 5)
relata o mergulho que resultou na sua tetraplegia: "Desde esse dia sou uma
cabeça viva em um corpo morto. Se fosse um animal teria sido sacrificado como
um sentimento humano nobre".
Andrew
Solomon (2002) relata, em seu livro O demônio do meio-dia, o processo de
depressão e a experiência pessoal e familiar com o suicídio. A mãe do autor, a
qual tinha câncer e múltiplos sintomas, cometeu suicídio de forma racional e
planejada com a concordância da família.
O
que fazer diante disso, diante dessa ética? Sabemos que para cada suicídio, há
pelo menos quatro tentativas, e é justamente aí que a intervenção pode ser
fundamental. Estima-se que 800 mil pessoas morram desta forma anualmente,
uma a cada 40 segundos, o que equivale a 1,4% dos óbitos totais. Cerca de
78% ocorrem em países de renda média e baixa. Segundo a OMS, apenas 28 países
possuem estratégia nacional de combate à morte voluntária. A média global
é de 10,7 por 100 mil habitantes, sendo 15/100 mil entre homens e 8
entre as mulheres.
No
Brasil, a cada 100 mil pessoas, seis se matam todo ano. Apesar de ser um índice relativamente abaixo em
comparação aos outros, nós somos o oitavo país com mais suicídios no mundo em
números absolutos (foram 11.821 entre 2010 e 2012). E pior: estima-se que, para
cada pessoa que comete suicídio, existem pelo menos outras 20 que tentaram, mas
não conseguiram consumar o ato.
Botega
(2007) afirma que o suicídio é problema de saúde pública. No Brasil e em países
da América Latina, há predomínio do suicídio entre homens e ideação e
tentativas entre mulheres, com índices maiores entre pessoas solitárias.
Há
valorização da liberdade individual, e o sofrimento pode estar relacionado com
a obrigatoriedade de sentir prazer. O sentimento de desenraizamento envolve
perda de referenciais simbólicos, gerando insegurança. Os autores se
fundamentam em Freud para compreender a destrutividade como sintoma para lidar
com o ambiente hostil, enfrentar a dor psíquica e o desamparo, podendo levar ao
ato suicida.
Solomon
(2002) se refere a quatro tipos de suicídio: 1. atos nos quais impera a
impulsividade, como forma de expulsar a dor; 2. ações em que predomina a busca
de alívio e consolo pela morte; 3. processos em que a morte é considerada como
a única saída para o sofrimento e forma de aliviar o fardo de pessoas próximas;
4. planejamento racional do suicídio.
Cassorla
(2004) menciona as principais fantasias observadas em pacientes com ideação ou
tentativa de suicídio: 1. busca de outra vida; 2. reencontro com a pessoa
querida, fato observado pelo aumento do índice de mortes após viuvez; 3.
autopunição, ligada à experiência de culpa em pessoas com melancolia; 4.
vingança e punição, como forma de castigar pessoas próximas; 5. pedido de
ajuda, a comunicação do que não pode ser expresso.
Segundo
o autor, há forte associação entre transtorno mental, questões existenciais,
solidão, desamparo e impotência. Cassorla (2004) aponta que jovens podem
cometer suicídio como forma de buscar uma nova vida, excitação, pedido de ajuda
ou para comunicar que algo não vai bem.
Para
alguns idosos, o sentimento de inutilidade provoca o desejo de morrer. Planejar
a morte pode proporcionar sensação de controle da vida, como resposta ao
desinvestimento social. De acordo com Lépargneur (2004), pacientes idosos podem
ser considerados como "pedaço de carne numerado", uma morte social.
Então, buscam o suicídio como forma de encerrar a vida, sentida como indigna.
Cassorla
(1991) aponta que, diante da desintegração psíquica, da sensação de
aniquilamento, a morte pode ser forma de escape, o que pode justificar o maior
índice de suicídios entre pessoas com depressão e esquizofrenia. Menninger
(1965) observa que a opção pelo suicídio pode ser menos dolorosa do que a
melancolia. O suicídio é uma das formas de matar a depressão e o sofrimento, e
segundo Solomon (2002), uma forma de amor a si.
Voltemos
a pergunta e o que fazer? Qual o caminho possível? Caio Fábio em uma de suas pregações
falando sobreo suicídio coletivo de Massada, diz que aos que escrevem para ele
perguntando se podem se suicidar, ele diz que não, mas quando alguém comenta
sobre alguém que suicidou ele consola, pois, a Cruz é maior que qualquer forca.
O
que posso dizer é que precisamos atuar antes da instalação dessa ética do
suicídio, promovendo uma ética para a vida, que valoriza a liberdade, mas sem
as falsas esperanças. É preciso mostrar as saídas antes que não reste ao
sujeito saída alguma. E para isso é preciso compreender os outros, ouvindo suas
dores sem aumentar seus sentimentos de culpa. É preciso andar junto enquanto se
está no caminho. É preciso levar a sério os trabalhos terapêuticos. Temos que
ampliar o sistema de apoio, procurando ajudar a família na compreensão dos
motivos do ato suicida numa abordagem multidisciplinar.
Num
mandamento só, é preciso amar o outro, e permitir que esse amor ganhe, carne,
gesto, som, afago, amparo, cuidado, respeito, para que juntos caminhemos sob um
mundo que só faz sentido pelo e no Amor, do contrário fica muito difícil revertemos
a ética do suicídio.
Ou
caminhamos sob o solo de um caminho gracioso ou nos afundaremos nos mares da
existência sem sentido.
Ivo
Fernandes
Texto
original escrito em 30 de setembro de 18
Adaptado
em 21 de março de 22
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