Não te matarás – da angústia ao suicídio
O suicídio não é um tema fácil.
Nenhuma ciência dá condições absolutas de fecharmos essa questão em torno de
apenas um discurso. No entanto não se pode deixar de buscar uma compreensão cada
vez mais profunda diante dos números.
- Cerca de 800 mil
pessoas morrem por suicídio todos os anos ( a cada 40 segundos)
- Para cada suicídio,
há muito mais pessoas que tentam o suicídio a cada ano. A tentativa prévia
é o fator de risco mais importante para o suicídio na população em geral.
- O suicídio é a
segunda principal causa de morte entre jovens com idade entre 15 e 29 anos
(após as
complicações na gravidez, e a terceira entre meninos, depois de acidentes
de trânsito e violência.)
- 79% dos suicídios no
mundo ocorrem em países de baixa e média renda.
É importante ressaltarmos que
a maioria dos casos de suicídio não são atos voluntários racionais, antes são
resultado de um estado completamente estranho ao raciocínio. Quem comete
suicídio é antes de tudo uma vítima de algo que lhe habita. Por isso é importante
buscarmos a compreensão das causas para podermos combater. O reconhecimento
destes dados possibilita aos programas de incentivo à prevenção uma visada do
suicídio como um complexo que envolve fatores psicológicos, sociais,
biológicos, culturais e ambientais. Trata-se de um sério problema de saúde
pública.
O ato suicida, compreendido
como não racional e não voluntário, permite que se descreva o suicida por
características como a presença de sentimentos ambivalentes desde os quais “a
pessoa sente um desejo de fugir da dor de viver e sente o desejo de viver ao
mesmo tempo. Muitas pessoas suicidas não querem realmente morrer” (WORLD HEALTH
ORGANIZATION, 2002, p.77). Portanto, considerar o ato suicida como não racional
e não voluntário e definir o suicida como uma pessoa que não quer morrer são
dados básicos que sustentam a detecção e o gerenciamento de fatores de risco para
a prevenção do suicídio. Deriva desse pressuposto que a disponibilidade
imediata de um método para cometer suicídio é um fator de risco e que “a
redução do acesso aos meios de cometer suicídio é uma estratégia eficaz de
prevenção do suicídio” (WORLD HE- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 34 – p.
63-70 – Dezembro. 2010
Logo, combater o suicídio é combater
todas as possibilidades que podem levar o sujeito a isso, da posse e porte de armas
até o excesso de isolamento virtual. Quando se afirma não haver outra saída,
entende-se saída para quê? Para a infelicidade? Para a dor? É preciso entender
o que está dizendo cada pessoa.
É também preciso rever os
preconceitos sobre o tema. Durante muito tempo a tradição cristã considerou o
suicídio, um tipo de homicídio, de assassinato. E portanto, o mandamento “não
matarás” também foi lido como “não te matarás”. Mas será que podemos dizer que
um sujeito conduzido ao suicídio por forças maiores que sua racionalidade,
realmente se matou, ou foi morto por tal condição? Se eu entendo que o suicida não
quer morrer (quer aqui como ato voluntário, racional) então não estou diante de
um homicida, mas diante de uma vítima.
Entendendo o suicida como vítima,
podemos identificar alguns elementos que podem nos ajudar a lutar contra esse
quadro. Dois deles merecem destaque, o luto e a melancolia. Freud escreveu: "no luto, é
o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio eu". Sendo
o eu desvalorizado e passível de punição haverá um desapego à vida.
Freud diz que na melancolia as autorecriminações são
recriminações feitas a um objeto amado, que foram deslocadas desse objeto para
o eu. A retirada dessas acusações do objeto amado e direcionadas para o eu é
pilar na reflexão psicanalítica acerca da melancolia e para a construção de
considerações sobre o suicídio. Há uma identificação do eu com o objeto
abandonado. Dessa forma, a "sombra do objeto caiu sobre o eu, e este pôde,
daí por diante, ser julgado por um agente especial" (Freud, 1917 [1915]
/1996a p.280). Estabelece-se uma identificação do eu com o objeto que fora
abandonado, a partir de então é julgado como se fosse o objeto perdido, a perda
deste objeto culminou em uma perda do eu. Mas como o eu consente com a
própria destruição? O eu só pode se matar se puder tratar a si mesmo como um
objeto, dirigindo contra si mesmo a hostilidade relacionada a um objeto.
Observa-se na melancolia que o eu apenas se destrói quando trata a si próprio
como um objeto, a destrutividade é uma reação do eu para com objetos
pertencentes ao mundo externo.
É preciso levar a compreensão
das coisas perdidas e não se confundir com elas. É importante identificar a
constituição do supereu e pela consciência diminuir os sentimentos de culpa,
ódio ou desprezo de si.
Quando se compreende o homem
como um ser de falta, como quem foi cortado de uma situação originária, temos
um sujeito que guarda em si uma angústia por um objeto perdido que só pode ser
pensado em termos mitológicos, como é o caso do paraíso edênico. Assim essa
sensação estrutural do objeto perdido é revivido na tensão de perda de qualquer
outro objeto, e na tentativa de não perder o homem sofre, e como não é possível
não perder, vive essa dinâmica ampliando os objetos e assim escapando da angústia
permanente para a transitória, mas quando esses objetos externos perdem sua
força a angústia se associa ao próprio eu, e aí perdido de si, o homem não
consegue suportar a existência em angústia permanente.
No entanto, Segundo Freud,
"é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo,
podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores. Por isso, (...)
no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria
imortalidade" (Freud, 1915/1996k, p. 327). Essa citação de Freud aponta um
desconhecimento sobre a própria morte, não há um registro de morte no
inconsciente.
Então o que ocorre efetivamente no suicídio? Uma tentativa de fugir de
uma situação de sofrimento que chega às raias do insuportável, da angústia
permanente.
É preciso combater o fim do desejo, ou mesmo o fim da falta,
pois a falta nos faz transitar de objeto e assim viver, porém quando essas
coisas deixam de estar no mundo externo, e se coloca sobre o eu, o sujeito é
tomado de angústia sem poder representá-la.
É preciso valorizar encontros e diferenças, pois o abandono
do Outro ou a série de encontros faltosos com o real, são causas de sujeitos
empobrecidos e aniquilados, que assim escolhem morrer, fazendo do suicídio algo
que dê significado a uma vida sem sentido.
É preciso resgatar fantasias, porém não é preciso retroceder
a magias ou enganos, podemos resgatar pela via da poesia, da espiritualidade,
da música, do sentimento de totalidade, da terapia. Se por um lado é a percepção
da ilusão o caminho da cura para um neurótico, por outro o fim delas pode ser o
gatilho do suicídio. É preciso então potência de criar, é preciso força para
inventar. A Vida tem o sentido que dermos a ela, e podemos dar belos sentidos.
Na clínica psicanalítica a força da cura
está na transferência, e só há real transferência quando o analista ocupa o lugar
do suposto saber, colocado aí pelo analisante e assumido estrategicamente pelo
analista. É nessa transferência que surge o amor ao saber. A clínica do suicida
se dá da mesma maneira, substituir o gozo da morte pelo gozo do saber. Fazer de
sua vida a questão, da sua descoberta a meta.
Levando para fora da clínica é preciso reencantar
a jornada, valorizar a pergunta, reinventar os sentidos. O novo mandamento é: inventa
a vida!
Ivo Fernandes
15 de setembro de 2019
Consultas, citações e trechos
AGOSTINHO, S. (413-426), A
cidade de Deus. 2. ed.. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. v.1, livro
1,cap.XX.
Freud, S. (1996a). Luto e melancolia (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, Vol. 14, pp. 245-263). Rio de Janeiro: Imago.
(Originalmente publicado em 1917).
Freud, S. (1996k). Reflexões para os tempos de guerra e morte (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, Vol. 14 pp. 281-312). Rio de Janeiro: Imago.
(Originalmente publicado em 1915).
CARVALHO, S. A morte pode esperar? Clínica psicanalítica do suicídio. Salvador:
Associação Campo Psicanalítico, 2014
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