A Linguagem e a Morte
"A linguagem é a expressão adequada de todas as realidades?"
Só podemos
experimentar a morte como símbolo!
Existem duas características fundamentais do ser humano, a linguagem e a
morte e no meio delas a angústia. Dessas
procedem ‘quase’ todas as outras, como a consciência por exemplo. No entanto
tais características ditas como fundamentais, estão em volta de um mistério. E
todo mistério é um indizível. A
linguagem não pode falar de si, na verdade a linguagem não pode falar de nada.
Tudo que está na linguagem é segundo momento, ela não pode traduzir o ser, logo, mostrar algo, querer captar o
Isto na indicação significa apenas ter a experiência de que a certeza sensível
é, na verdade, um processo dialético de negação e mediação; que, portanto, o
absoluto, será sempre descrito relativamente. A Verdade é inacessível à linguagem.
Sendo assim a linguagem conserva o indizível
dizendo-o, colhendo-o na sua negatividade. Apreende-se o Isto se temos o
significado deste isto, que é um não-isto que ele encerra, logo, uma
negatividade essencial. O Isto significa indicação ou a essência segundo o
sujeito, assim Hegel afirma que o limite da linguagem cai sempre no interior da
linguagem, que está desde sempre contido nela como negativo. Inicialmente o
indizível é a coisa mais concreta, imediata, genérica e universal, mas é necessariamente
o gênero supremo, além do qual não é possível definição.
Ora, se a linguagem é segundo momento, a nossa própria consciência
também o é, pois a linguagem é a voz da consciência, pois todo som tem um
significado, nela tem um nome, idealidade de uma coisa existente. E da consciência nasce a
experiência da morte enquanto morte. O animal não morre e não fala, ele tem voz
e cessa de viver. O homem é o falante e o mortal, e nisto está para o negativo,
para o nada. É um ser-para-o-fim, ou seja, para a morte e, como tal, esta desde
sempre em relação com ela.
Mas o fato de dizermos que a linguagem não fala aquilo que quer dizer,
não significa que ela precisa calar, pois é na fala que a linguagem conserva o
indizível dizendo-o, ou seja, colhendo-o na sua negatividade. Só é possível
falar sobre o Indizível, dizendo-o.
É por causa da linguagem que o homem dar-se conta do nada. Mas antes da linguagem há a
Voz, é ela que abre o lugar da linguagem e esta instaura as categorias do
tempo. O ser é como a Voz, e ela está naquilo que é suprimido cada vez que
se diz. Mas toda experiência disto no homem, o ser-o-aí tem seu lugar na
linguagem no suprimir da Voz.
E perguntamos: o que existe na Voz? Nada. Mas daí a linguagem abre o ser e o sentido. Em outras palavras é na
linguagem que o ser se mostra e se oculta. E essa experiência do ser é um
chamado da Voz, que chama sem nada dizer. Poeticamente podíamos chamar a Voz de
Silêncio. E no Silêncio está a morada do Logos.
Assim não confundamos linguagem e Voz. A linguagem
não pode ser dita nem mesmo como absolutamente a voz do homem, como o zurro é a
voz do asno, e o rechino é a voz da cigarra. O homem é o ser-o-aí, justamente
porque possui uma voz que não é a linguagem. Para entender melhor isso talvez o
texto de Giorgio Caproni, pode nos ajudar:
O FIM DO PENSAMENTO
Giorgio Agamben
Tradução de Alberto Pucheu
Acontece como quando caminhamos no bosque e, subitamente, surpreende-nos a
variedade inaudita das vozes animais. Silvo, trilo, chilro, lascas de lenha e
metais estilhaçados, assobios, cochichos, cicios: cada animal tem seu som,
nascido imediatamente de si. Ao fim, a nota dúplice do cuco ri de nosso
silêncio, divulgando nosso ser insustentável, o único sem voz no coro infinito
das vozes animais. Então, provamos do falar, do pensar.
Em
nossa língua, a palavra pensamento tem por origem o significado de angústia, de
ímpeto ansioso, que se encontra ainda na expressão familiar: stare in pensiero (estar
atormentado). O verbo latino pendere,
de onde deriva a palavra nas línguas romanas, significa estar suspenso. Agostinho utiliza-o
neste sentido para caracterizar o processo do conhecimento: “O desejo que há na
procura procede de quem busca e, de alguma maneira, permanece suspenso (pendet quodammodo), até repousar na
união com o objeto enfim encontrado”.
Que
coisa está suspensa, que coisa pende no pensamento? Pensar, na linguagem, não
podemos, porque a linguagem é e não é a nossa voz. Eis uma pendência, uma
questão não resolvida na linguagem: será nossa a voz, como o zurro a voz do
burro e o trilo a voz do grilo? Por isto, ao falar, somos constrangidos a
pensar e manter suspensas as palavras. O pensamento é a pendência da voz na
linguagem.
(No
seu trilo, é claro: o grilo não pensa).
À
noite, passeando pelo bosque, a cada passo, sentimos animais invisíveis
rastejarem por entre as moitas que ladeiam o caminho: se lagartos ou ouriços,
tordos ou serpentes, não sabemos. O mesmo acontece quando pensamos: não tem
importância o caminho da palavra que percorremos, mas a confusa agitação que
sentimos ao redor, como a de um animal em fuga ou a de qualquer coisa que, de
repente, acorda com os barulhos dos passos.
O
animal em fuga, que percebemos rumorejar pelas palavras, – foi dito –, é a
nossa voz. Pensamos – temos as palavras suspensas e nós mesmos estamos como que
suspensos na linguagem – porque esperamos, assim, reencontrar, ao fim, a voz. Um
dia, – foi dito –, a voz se inscreve na linguagem. A procura da voz na
linguagem é o pensamento.
Que a
linguagem surpreenda e sempre antecipe a voz, que a pendência da voz na
linguagem não haja mais fim: este é o problema da filosofia. (Como cada
um resolve esta
pendência é a ética).
Mas a voz, a voz humana não é. Não é nossa a voz que podemos seguir no
traçado da linguagem, colhendo-a – para recordá-la – no ponto em que ela se
desfaz no nome, se inscreve na letra. Nós falamos com a voz que não temos, que
jamais foi escrita (agrapta nomima,
Antígona, 454). E a linguagem é sempre “letra morta”.
Pensar, podemos apenas se a linguagem não é a nossa voz, apenas se,
nisso, medimos o insondável de nossa afonia. O que chamamos de mundo é
este abismo.
A lógica mostra que a linguagem não é a minha voz. A voz – ela diz –
foi, mas já não é, nem poderá mais ser. A linguagem tem lugar no não-lugar da
voz. Isto significa dizer que o pensamento nada há de pensar da voz. Esta é a
sua piedade.
Então, a fuga, a pendência da voz na linguagem deve ter fim. Podemos
deixar de ter a linguagem, a voz, em suspensão. Se a voz jamais foi, se o
pensamento é pensamento da voz, ele não tem
mais nada a pensar. O
pensamento cumprido não tem mais pensamento.
Do termo latino que, por séculos, designou o pensamento, cogitare, na nossa língua, restou
apenas um traço na palavra tracotanza[1].
Ainda no século XIV, coto, cuitanza, queria dizer: pensamento.
Através do provençal oltracuidansa, tracotanza provém do
latino ultracogitare:
exceder, passar o limite do pensamento, sobrepensar, spensare.
O que foi dito poderá ser dito de novo. Mas o que foi pensado não poderá
mais ser dito. Da palavra pensamento, tu te despedes para sempre.
Caminhamos no bosque: de repente, sentimos um fremir de asas ou de ervas
agitadas. Um faisão voa e mal temos tempo de vê-lo desaparecer por entre os
galhos, um porco-espinho se embrenha no mato mais denso, a serpente faz as
folhas secas crepitarem sob si. Não o encontro, mas esta fuga de animais
selvagens invisíveis, é o pensamento. Não, não era a nossa voz. Nós nos
avizinhamos da linguagem o quanto era possível, quase a roçamos, em suspensão: mas
o nosso encontro não ocorreu, e, agora, retornamos, impensadamente, desta
vizinhança, para a casa.
A linguagem,
portanto, é a nossa voz, a nossa linguagem.
Como tu agora falas – eis a
ética.
Assim consentir com tais coisas, ou escutar a Voz que
não diz, significa consentir com
morte, ser capaz de morrer ao invés de simplesmente cessa de viver. Significa
ter experiência da morte como morte, fazer experiência da supressão da voz e do
surgimento, em seu lugar, de outra Voz, que constitui o originário fundamento
negativo da palavra humana. Estar na linguagem sem ser aí chamado por nenhuma
Voz, simplesmente morrer sem ser chamado pela morte é, talvez, a experiência
mais abissal que não possibilitaria o sermos o ser-aí.
Ivo Fernandes
12 de maio de 2013
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